A sala está em buracos.
Qual é o buraco maior, o que está na parede ou o que está dentro das pessoas que abriram esses buracos?
O buraco nas pessoas é muito maior.
A foto acima é recente, mostra um garoto palestino em Gaza. Mostra uma escola perfurada pela dificuldade humana de viver em paz. Mostra uma escola que mais parece uma peneira, com fendas e cavernas em que o mal escorre sob os olhos de um garotinho que certamente não consegue entender o que está se passando — alguém consegue?
Me senti muito mal ao olhar essa foto. Não que eu não tenha visto imagens piores da situação no Oriente Médio, vi sim, e há fotos que expressam o concreto horror, que têm cheiro de queimadura, que ricocheteiam no olhar e batem no estômago como balas de revólver. Essa imagem saltou dentro de mim e me incomodou mais do que as outras porque dediquei mais tempo para olhá-la, para tocá-la com os dedos do meus olhos. Parei muitos minutos diante dela, fazendo uma radiografia de cada um dos buracos na parede, e comecei a contá-los, tentando sentir a fundura dos poços de escuro, imaginando o sons do ambiente, sentindo o chão de pedras no caminho. Então pisei firme nesse chão, inalando a poeira que se acumulava sobre as mesas no canto do esquecimento. Me perguntei: que tipo de sensação da vida tem uma criança que nasce na esburacação?
Olhe a foto por mais tempo, ande pela sala na companhia do garoto.
Coloque a mão nos buracos na lousa, o que você sente?
Assim como o garoto, use seu dedo indicador para escrever algo na lousa. O que quer escrever?
Passe as palmas das suas mãos sobre a lousa, prove o sabor do pó que se acumula em cada centímetro de superfície. Só quando dedicamos mais tempo para sentir o que está ao nosso redor é que nos aproximamos do que realmente está pulsando sob os panos das cenas. Se entramos numa sala escura, só alguns minutos de observação permitem que nossos olhos se acostumem com o breu e passem a vislumbrar linhas e vultos.
Agora que você olhou a foto com mais tempo, me diga: o que você sente?
Não sei sobre você, mas eu sinto minhas entranhas tão ou mais perfuradas do que a lousa. Se meu corpo fosse uma casa e as pessoas pudessem entrar nele, encontrariam peneiras em forma de paredes. Pois ao abrir os olhos para a realidade que o homem está construindo — ou desconstruindo –, ainda que eu veja muitos pontos potentes, belos e promissores, sou também metralhado bruscamente por cacos de catástrofes que se espalham e se reproduzem como vermes.
E não vim para esmiuçar a discussão sobre o conflito entre palestinos e israelenses, desconheço as miudezas dessa narrativa. Minhas palavras apontam outra questão: a insensibilidade que gera mais e mais buracos, seja no Oriente Médio, seja aqui no Brasil.
Toda vez que me entrego a passeios pelos porões do nosso tempo, sinto a necessidade de caminhar para ver a realidade em movimento. Numa das minhas caminhadas silenciosas mais recentes, cheguei até o Parque da Água Branca, em Perdizes, e andei à noite entre as árvores. Perambulavam pela mente os poços de horror em Gaza e os porões selvagens que encontro por perto, em SP, pelo Brasil. Cheguei até uma parte do parque onde havia um bambuzal. Estava escuro, então entrei no meio do bambuzal e, olhando para cima, via apenas o pano preto da noite se estendendo na folhas que alcançavam as alturas. O vento movia as folhas com uma delicadeza bonita de se ver e ouvir, como se a multidão de folhinhas fosse um cardume na água, ora numa direção, ora em outra. Decidi me deitar no chão, para olhar o ambiente com o corpo inteiro. Os pernilongos me mordiam, deixavam coceiras em mim.
Corpo estendido sobre o chão, olhar estendido sobre o céu. Me senti em pedaços. Como se cada parte de mim fosse uma pedra jogada numa parte do parque. Nossos tempos nos transformam em pedras para que então sejamos atirados uns nos outros?
Observando as altas cabeças dos bambus em contato, em movimento numa dança com o vento… Olhando as árvores ao redor… Me dei conta do quanto a paciência da natureza tem a nos ensinar. Aquelas árvores levaram anos para crescer… Silenciosamente… Suas folhas, tão precisamente esculpidas pelo tempo… Tão cuidadosamente esculpidas pelo tempo… De novo, o tempo. Tudo mudará se dedicarmos mais tempo para aprender com o ambiente ao nosso redor, para escutar as fotos que gritam com a garganta em estado de convulsão, para perambular pelos vales e cavernas das pessoas… Num mundo em que tão poucos se leem para além das primeiras páginas, ver e ouvir sem se inebriar com a neblina instalada no ar se torna um ato político, uma campanha silenciosa pela erradicação do analfabetismo relacional.
Deixemos o Parque da Água Branca e suas árvores em paz. Voltemos a Gaza, diante do menino na sala. O que fazer depois de meditar sobre essa cena? O quê? Repito: a foto é forte não por causa do que dá para olhar, mas pelo que não se vê na sala. Afinal, o pior não são os buracos na parede, mas o que tais buracos evocam e apontam: os buracos nas pessoas, os buracos em mim.
[AVISO: Se aceitar prosseguir a leitura do post, por favor, não deixe de seguir a proposta que vou compartilhar. Se não quiser levar à frente nenhum combinado para esculpir sua sensibilidade, por favor, largue esse texto de lado, sente-se no sofá da sua sala com paredes perfuradas por buracos, finja que nada aconteceu… Se continuar a leitura, atenda à proposta sem pestanejar, por favor, por favor, por favor]
O que são buracos? Lugares onde mora o escuro, a fraqueza. Onde mora o horror. Mas também pelos buracos pode entrar a luz. Pelas frestas pode escorrer a água que mata a sede. Então percebamos cada buraco nas paredes como gritos que suplicam por relações genuínas que os preencham.
Para cultivar relações, entrando nas entrelinhas do outro, precisamos criar mais e mais momentos em que lemos as pessoas com tempo e atenção. Pois então, proponho que você se comprometa a organizar uma Roda de Leitura de Pessoas.
E o que é uma Roda de Leitura de Pessoas?
Trata-se de um encontro de pelo menos duas horas em que duas pessoas são convidadas a contar sua história de vida em detalhes.
Primeiro, junte um grupo de pessoas. (I)
Elejam juntos quem serão os dois participantes da roda que vão compartilhar suas histórias de vida. (II)
Proponha que comecem contando um momento que os marcaram muito e escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute. No decorrer da conversa, convide os participantes a fazerem perguntas que levem os olhares para outras camadas das narrativas. (III)
Inicialmente, não se esqueça de provocar as pessoas presentes a escutarem com atenção não apenas palavras, mas também os silêncios.
A Roda de Leitura de Pessoas é uma simples provocação de encontro com páginas alheias que a pressa e a miopia não nos deixa ler — há infinitos volumes na epopeia de cada um. Faça essa roda na sua casa, escola, empresa, seja onde for. É uma forma de você entrar nas suas salas. Nas salas dos outros. Para observar buracos e frestas. Para olhar as lousas. As mesas. A poeira impregnada nas superfícies e nas peles. As bonitezas e fios d’água que escorrem pelos cantos.
A sala está em buracos.
Ler o que se passa lá dentro não é pouco. Ler o que se passa lá dentro exige coragem. Coragem de encontrar o mau de frente. Coragem de encontrar o bem de frente. Coragem de esculpir a si mesmo. Sem esse passo, não conseguimos responder o mundo à altura. Sem esse passo, só aumentarão os buracos na sala.
Extraído do blog de André Gravatá
A sala está em buracos.
Qual é o buraco maior, o que está na parede ou o que está dentro das pessoas que abriram esses buracos?
O buraco nas pessoas é muito maior.
A foto acima é recente, mostra um garoto palestino em Gaza. Mostra uma escola perfurada pela dificuldade humana de viver em paz. Mostra uma escola que mais parece uma peneira, com fendas e cavernas em que o mal escorre sob os olhos de um garotinho que certamente não consegue entender o que está se passando — alguém consegue?
Me senti muito mal ao olhar essa foto. Não que eu não tenha visto imagens piores da situação no Oriente Médio, vi sim, e há fotos que expressam o concreto horror, que têm cheiro de queimadura, que ricocheteiam no olhar e batem no estômago como balas de revólver. Essa imagem saltou dentro de mim e me incomodou mais do que as outras porque dediquei mais tempo para olhá-la, para tocá-la com os dedos do meus olhos. Parei muitos minutos diante dela, fazendo uma radiografia de cada um dos buracos na parede, e comecei a contá-los, tentando sentir a fundura dos poços de escuro, imaginando o sons do ambiente, sentindo o chão de pedras no caminho. Então pisei firme nesse chão, inalando a poeira que se acumulava sobre as mesas no canto do esquecimento. Me perguntei: que tipo de sensação da vida tem uma criança que nasce na esburacação?
Olhe a foto por mais tempo, ande pela sala na companhia do garoto.
Coloque a mão nos buracos na lousa, o que você sente?
Assim como o garoto, use seu dedo indicador para escrever algo na lousa. O que quer escrever?
Passe as palmas das suas mãos sobre a lousa, prove o sabor do pó que se acumula em cada centímetro de superfície. Só quando dedicamos mais tempo para sentir o que está ao nosso redor é que nos aproximamos do que realmente está pulsando sob os panos das cenas. Se entramos numa sala escura, só alguns minutos de observação permitem que nossos olhos se acostumem com o breu e passem a vislumbrar linhas e vultos.
Agora que você olhou a foto com mais tempo, me diga: o que você sente?
Não sei sobre você, mas eu sinto minhas entranhas tão ou mais perfuradas do que a lousa. Se meu corpo fosse uma casa e as pessoas pudessem entrar nele, encontrariam peneiras em forma de paredes. Pois ao abrir os olhos para a realidade que o homem está construindo — ou desconstruindo –, ainda que eu veja muitos pontos potentes, belos e promissores, sou também metralhado bruscamente por cacos de catástrofes que se espalham e se reproduzem como vermes.
E não vim para esmiuçar a discussão sobre o conflito entre palestinos e israelenses, desconheço as miudezas dessa narrativa. Minhas palavras apontam outra questão: a insensibilidade que gera mais e mais buracos, seja no Oriente Médio, seja aqui no Brasil.
Toda vez que me entrego a passeios pelos porões do nosso tempo, sinto a necessidade de caminhar para ver a realidade em movimento. Numa das minhas caminhadas silenciosas mais recentes, cheguei até o Parque da Água Branca, em Perdizes, e andei à noite entre as árvores. Perambulavam pela mente os poços de horror em Gaza e os porões selvagens que encontro por perto, em SP, pelo Brasil. Cheguei até uma parte do parque onde havia um bambuzal. Estava escuro, então entrei no meio do bambuzal e, olhando para cima, via apenas o pano preto da noite se estendendo na folhas que alcançavam as alturas. O vento movia as folhas com uma delicadeza bonita de se ver e ouvir, como se a multidão de folhinhas fosse um cardume na água, ora numa direção, ora em outra. Decidi me deitar no chão, para olhar o ambiente com o corpo inteiro. Os pernilongos me mordiam, deixavam coceiras em mim.
Corpo estendido sobre o chão, olhar estendido sobre o céu. Me senti em pedaços. Como se cada parte de mim fosse uma pedra jogada numa parte do parque. Nossos tempos nos transformam em pedras para que então sejamos atirados uns nos outros?
Observando as altas cabeças dos bambus em contato, em movimento numa dança com o vento… Olhando as árvores ao redor… Me dei conta do quanto a paciência da natureza tem a nos ensinar. Aquelas árvores levaram anos para crescer… Silenciosamente… Suas folhas, tão precisamente esculpidas pelo tempo… Tão cuidadosamente esculpidas pelo tempo… De novo, o tempo. Tudo mudará se dedicarmos mais tempo para aprender com o ambiente ao nosso redor, para escutar as fotos que gritam com a garganta em estado de convulsão, para perambular pelos vales e cavernas das pessoas… Num mundo em que tão poucos se leem para além das primeiras páginas, ver e ouvir sem se inebriar com a neblina instalada no ar se torna um ato político, uma campanha silenciosa pela erradicação do analfabetismo relacional.
Deixemos o Parque da Água Branca e suas árvores em paz. Voltemos a Gaza, diante do menino na sala. O que fazer depois de meditar sobre essa cena? O quê? Repito: a foto é forte não por causa do que dá para olhar, mas pelo que não se vê na sala. Afinal, o pior não são os buracos na parede, mas o que tais buracos evocam e apontam: os buracos nas pessoas, os buracos em mim.
[AVISO: Se aceitar prosseguir a leitura do post, por favor, não deixe de seguir a proposta que vou compartilhar. Se não quiser levar à frente nenhum combinado para esculpir sua sensibilidade, por favor, largue esse texto de lado, sente-se no sofá da sua sala com paredes perfuradas por buracos, finja que nada aconteceu… Se continuar a leitura, atenda à proposta sem pestanejar, por favor, por favor, por favor]
O que são buracos? Lugares onde mora o escuro, a fraqueza. Onde mora o horror. Mas também pelos buracos pode entrar a luz. Pelas frestas pode escorrer a água que mata a sede. Então percebamos cada buraco nas paredes como gritos que suplicam por relações genuínas que os preencham.
Para cultivar relações, entrando nas entrelinhas do outro, precisamos criar mais e mais momentos em que lemos as pessoas com tempo e atenção. Pois então, proponho que você se comprometa a organizar uma Roda de Leitura de Pessoas.
E o que é uma Roda de Leitura de Pessoas?
Trata-se de um encontro de pelo menos duas horas em que duas pessoas são convidadas a contar sua história de vida em detalhes.
Primeiro, junte um grupo de pessoas. (I)
Elejam juntos quem serão os dois participantes da roda que vão compartilhar suas histórias de vida. (II)
Proponha que comecem contando um momento que os marcaram muito e escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute, escute. No decorrer da conversa, convide os participantes a fazerem perguntas que levem os olhares para outras camadas das narrativas. (III)
Inicialmente, não se esqueça de provocar as pessoas presentes a escutarem com atenção não apenas palavras, mas também os silêncios.
A Roda de Leitura de Pessoas é uma simples provocação de encontro com páginas alheias que a pressa e a miopia não nos deixa ler — há infinitos volumes na epopeia de cada um. Faça essa roda na sua casa, escola, empresa, seja onde for. É uma forma de você entrar nas suas salas. Nas salas dos outros. Para observar buracos e frestas. Para olhar as lousas. As mesas. A poeira impregnada nas superfícies e nas peles. As bonitezas e fios d’água que escorrem pelos cantos.
A sala está em buracos.
Ler o que se passa lá dentro não é pouco. Ler o que se passa lá dentro exige coragem. Coragem de encontrar o mau de frente. Coragem de encontrar o bem de frente. Coragem de esculpir a si mesmo. Sem esse passo, não conseguimos responder o mundo à altura. Sem esse passo, só aumentarão os buracos na sala.
Extraído do blog de André Gravatá